Imagem: O espelho falso, 1928 por Rene Magritte |
Aqui estamos mais uma vez: o instante em que todos, como em uma coreografia ensaiada, paramos diante do espelho do tempo. Pobre, rico, preto, branco, homem ou mulher de todas as condições, preferências, nacionalidades — de alguma maneira, participamos do maior ritual coletivo da humanidade. O dia 31 de dezembro pede, mesmo que roube apenas uns segundos, um vislumbrar daquilo que foi e do que será.
Já gastou um pouco de pensamento imaginando que olhar a retrospectiva do ano é, de um jeito estranho, como encarar um espelho? Você está ali, olhando para o caprichoso, e ele devolve um reflexo embaçado. Dos meses que acabamos de vencer, a imagem é nítida, quase fotográfica, afinal ainda está fresca na memória. Mas, ao mesmo tempo, o que está por vir surge envolto em uma névoa, como se o espelho guardasse um segredo que insiste em não revelar.
O ano de 2024 se vai. Meu espelho, de sua maneira, é o registro que faço escrevendo. Foram meses intermináveis? Parece que emendei 24 seguidos. Restaram cicatrizes? Os joelhos ainda sentem as feridas. Não faltaram também aprendizados e uma lista interminável de promessas que talvez nunca sairão do papel.
Existe um livro que está na minha lista de favoritos: As 48 Leis do Poder. Para mim, é uma bíblia da convivência humana. Em um de seus capítulos, Robert Greene fala sobre o espelho: uma ferramenta capaz de refletir, distorcer, ridicularizar e ensinar.
Acho que posso dizer que foi isso que 2024 fez comigo: riu do meu planejamento meticuloso. "O homem planeja e Deus ri", como diz o velho ditado iídiche. E o ano não parou por aí: derrubou minhas certezas e, com uma ironia afiada, ainda teve a audácia de me ensinar enquanto eu tentava, com olhos marejados, enxergar algo no reflexo.
Quero confessar um negócio: o ano começou com o peso esmagador de uma perda. Thor se foi, seguindo os passos que o Roscoe percorreu seis meses antes, deixando um vazio que nada, nem ninguém, ou nenhum calendário consegue preencher.
A vida endureceu, mas sem me embrutecer. A casca engrossou, é verdade, mas o coração ainda sabe doer e, talvez por isso, ainda sabe sonhar. Os cabelos mais brancos, que um dia foram vaidade, agora são troféus de batalhas vencidas — ou sobrevividas. E, entre lágrimas e suspiros, aprendi que toda passagem é ritual, que a finitude é menos uma sentença e mais um lembrete: tudo, e todos, têm um tempo. Nascer, descobrir, amadurecer, celebrar, partir.
"Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro... Presentemente, eu posso me considerar um sujeito de sorte, porque apesar de muito moço, me sinto são, e salvo, e forte." E talvez seja isso mesmo. Belchior, como se ele estivesse ali, com seu bigode e ironia, me consolava. Apesar das perdas, dos tropeços, dos dias em que a força parecia insuficiente, cheguei até aqui. E estar aqui já é, por si só, uma pequena vitória.
"Respeite quem pôde chegar onde a gente chegou. E quando pisar no terreiro procure primeiro saber quem eu sou", como canta Xande de Pilares.
Olhando para frente, o espelho é traiçoeiro. Em vez de refletir o que virá, ele devolve a minha própria expectativa. Dá-lhe remédio para a ansiedade, o velho antídoto contra os goles malditos que fingem acalmar, mas doem feito vício. Pudera! Existem situações e ocasiões em que a vida parece um deboche, não é? Como se fosse uma agenda em branco que insiste em questionar: “O que você vai fazer com seus próximos 365 dias?”.
Se o meu 2024 ensinou algo, foi a futilidade de tentar controlar o incontrolável. E, mesmo assim, contra toda a lógica, eu sigo. Ou melhor, nós seguimos. Planejamos, sonhamos, esperamos. Acreditamos que podemos moldar o futuro, embora saibamos que ele não está nas nossas mãos.
2025 surge como um palco vazio. Um roteiro incerto, cheio de possibilidades e também de incertezas. Mas, se há algo que aprendi nesses “24 meses” de 2024, é que o espelho não é só reflexo; é provocação, ironia, lição. Que ele me desarme e me enfureça o quanto quiser — no fundo, é isso que me mantém vivo e humano.
Então, brindo ao que foi e ao que será. Às lágrimas que me ensinaram e aos sorrisos que ainda vou descobrir. Que venha 2025: seja generoso. E, se não puder, que ao menos seja breve.